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Vacina para todos!

Em março de 2020, quando o país ainda contava os seus mortos na casa das dezenas, Bolsonaro afirmava não acreditar no número de mortos causados pela propagação do coronavírus em nosso país. “Eu não acredito nesses números”, disse. Segundo ele, “o cara morreu de uma gripe qualquer e colocam que morreu de coronavírus”, afirmava o presidente da República, responsável maior pela proteção da saúde da população. No mesmo mês, no dia 26, a Asfoc se posicionava sobre a chegada da Covid-19 ao território brasileiro (ver link https://www.facebook.com/asfocsn/posts/2962866653773185).

Na oportunidade, o Sindicato chamava a atenção, entre outros fatores, para a necessidade de uma resposta articulada aos efeitos nocivos do coronavírus, afirmando que uma “pandemia não se espalha apenas pela capacidade do vírus infectar as pessoas, mas por falta de políticas, recursos e esforços articulados no sentido de combatê-la. Uma articulação que, trágica e irresponsavelmente, deu lugar a polêmicas estéreis e a manipulações políticas criminosas. O respeito à vida cedeu lugar a cálculos eleitorais e a interesses particulares”. Estava claro para a Asfoc-SN que Bolsonaro não teria a grandeza para travar essa luta em defesa da saúde de todos.

De lá para cá, a situação piorou muito. Bolsonaro protagonizou uma série de péssimos exemplos, promovendo aglomerações e desdenhando do uso de máscaras e do isolamento como medidas de proteção. Desautorizava a Organização Mundial de Saúde e as autoridades sanitárias nacionais. Em conformidade com sua priorização da economia em detrimento da vida, o presidente colocou todas as fichas em uma aposta cômoda e desumana na obtenção de uma improvável imunização de rebando. Adicionalmente, e em sintonia com a estratégia adotada de dar livre curso a transmissão do vírus, passou a alardear o pretenso poder curativo de medicamentos desaconselhados pela comunidade científica mundial. Em curso no mundo todo, a busca pela obtenção de uma vacina não atraía a sua atenção.

A aposta na estratégia de imunização de rebanho estava associada, como mencionamos, à manutenção da “normalidade” da atividade econômica, vista pelo presidente como fundamental para contentar parte significativa de seu eleitorado formado por empresários. Inaugurava-se assim uma narrativa e uma condução política desastrosa que colocava em polos opostos as crises sanitária e econômica, ao invés de tratá-las em conjunto.

O país não conheceu nenhum grande plano de combate à pandemia. Não testemunhamos uma grande mobilização para cobrir a falta de respiradores e equipamentos de proteção individual. Não ouvimos um chamado nacional para enfrentar a crise. O que vimos foram ações esporádicas e desconexas levadas a efeito por atores diversos. A população foi abandonada à própria sorte sob o argumento de que não havia muito o que fazer a não ser “tocar a vida”, como aconselhou o presidente quando estávamos prestes a atingir a marca de 100 mil óbitos.

A minimização da pandemia e da vida em contraposição e a valorização da esfera econômica se fizeram presentes na resistência inicial em instituir o auxílio emergencial. Para o núcleo central do governo, tendo à frente Paulo Guedes e Bolsonaro, o país deveria continuar como se nada de estranho estivesse acontecendo. Caberia a cada um enfrentar a “gripezinha” “como homens” e não como “maricas”. Afinal, como gostava de lembrar o presidente: “todos nós vamos morrer um dia” e, portanto, não haveria motivos para “essa histeria”. Histeria que segundo ele era promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pela comunidade científica e pela mídia. Comportamento e declarações que estavam em consonância com o fato de o governo não ter se preparado para enfrentar a nova ameaça embora tenha sido alertado com antecedência por setores da inteligência sobre os riscos de uma pandemia. Vale ressaltar que os avisos chegaram ainda em dezembro de 2019. Avisos rapidamente corroborados pelo noticiário internacional sobre o avanço da epidemia que atingiu a cidade chinesa de Wuhan. Estimulado pelo presidente da República, o negacionismo ganhou fôlego.

Confrontado por governadores e prefeitos, que pretendiam fechar fronteiras, importar equipamentos e decretar medidas como quarentenas, Bolsonaro reagiu, argumentando que tais iniciativas, além de atrapalhar a economia, feriam a autoridade da União. As divergências foram parar no Supremo Tribunal Federal (STF), que acabou dando ganho de causa aos governantes locais, reconhecendo que, nas suas respectivas jurisdições sem prejuízo do pacto federativo, eles tinham mais do que o direito de proteger a saúde da população. Eles tinham essa obrigação.  Em 15 abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) disse que estados e municípios poderiam tomar as medidas que acharem necessárias para combater o novo coronavírus, como isolamento social, fechamento do comércio e outras restrições.

Bolsonaro, tal qual Pilatos, lavou as mãos e se declarou tolhido na sua capacidade de enfrentar a pandemia. Buscava assim, atacar o Judiciário e colocar a responsabilidade das mortes e do desemprego nas costas do STF e dos governadores. Acusação rebatida pelo STF que negou veementemente que tivesse impedido o presidente de agir e de tomar o lugar de coordenador dos esforços nacionais para combater a Covid-19 e os seus efeitos na economia. Para o STF, o presidente procurava terceirizar a culpa por eventuais problemas gerados pela pandemia. Na perspectiva de muitos observadores, a reação de Bolsonaro diante da derrota na corte mais alta do país expressa o reconhecimento implícito de sua incapacidade e de sua falta de vontade de assumir o posto de articulador do esforço nacional contra o avanço da doença. Incapacidade e falta de vontade que marcam o seu governo quando se trata de construir pactos solidários em favor da vida e de condições dignas para todos.

De fato, autoritário e impositivo, Bolsonaro não foi capaz de ocupar o lugar que lhe cabia enquanto presidente nesse momento crucial de nossa história. Uma incapacidade que está na origem dos confrontos com antigos aliados como João Dória e Ronaldo Caiado, e na formação do Consórcio do Nordeste, como forma de suprir a falta de uma coordenação nacional. Ao invés de procurar unir o país, o presidente estimulou o crescimento de movimentos golpistas que atacaram a Constituição, o Congresso Nacional e buscaram constranger os ministros do STF.

Paralelamente o país assistia a uma profusão das chamadas “fake news”, cujas origens, de acordo com parlamentares que apoiaram Bolsonaro na eleição e nas primeiras horas de governo, levariam a um obscuro “Gabinete do Ódio”, em funcionamento no terceiro andar do Palácio do Planalto, em salas vizinhas ao gabinete presidencial, conforme relatou a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Fake News e ex-aliada de Bolsonaro.

Nessa mesma direção as universidades públicas foram alvo de pesada campanha de difamação desde o começo do governo. Acusadas, pelo ministro da Educação Abraham Weintraub e por apoiadores de Bolsonaro, de plantar maconha e promover balbúrdias. Acusações falsas que partiam do mesmo ministro que afirmou que se dependesse dele, boa parte dos opositores do governo – que ele chamava de vagabundos – estariam na cadeia. A começar, segundo declarou, em maio de 2020, na reunião ministerial em que Bolsonaro vociferava contra a oposição, pelo STF.

No combate à inteligência e ao pensamento crítico movido por um governo que não valoriza a ciência e a cultura, os institutos de pesquisa foram igualmente atacados pelo arbítrio e pela calúnia. Lembramos aqui o caso do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial que teve o seu diretor, Ricardo Galvão, demitido por Bolsonaro por revelar dados sobre o desmatamento que descontentavam o presidente da República. Outros exemplos são as intervenções no Ibama e no IBGE. Esta última, gerando interferências na metodologia de pesquisa consagrada e reconhecida internacionalmente e o adiamento do Censo 2020 para 2021. Atendia-se assim um desejo de Paulo Guedes que considerava excessivo o número de informações levantadas pelo órgão. Informações cruciais para o planejamento e execução de políticas públicas. A lista é enorme e inclui inúmeras instituições e a perseguição a pesquisadores e outros profissionais como fiscais e técnicos altamente especializados.

Em meio a maior emergência sanitária da história do país, a Fiocruz também não escapou de ter que lidar com essa tentativa de intimidação de instituições e pesquisadores. Podemos mencionar, por exemplo, os ataques do então ministro da Cidadania Osmar Terra à pesquisa sobre o uso de drogas. Uma estratégia que tem como característica a deformando a realidade e a intimidação da inteligência como condição prévia. Uma substituição das evidências científicas por opiniões marcadamente comprometidas com o conservadorismo autoritário e preconceituoso.

Comportamentos ideológicos, obscurantistas e totalitários de agressão à ciência e à democracia. Ataques orquestrados da barbárie às instituições da civilização. Atitudes que acabaram conformando um repertório de descaso e politização nefasta e improcedente com relação ao combate a pandemia.

Politização que aparece nos resultados da pesquisa ‘Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil’, realizada pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e a Conectas Direitos Humanos. Tornada pública em 21 de janeiro de 2021, a pesquisa se debruçou sobre os pronunciamentos e declarações informais do presidente e analisou um número expressivo de documentos emitidos pelo governo federal (portarias, medidas provisórias, resoluções, instruções normativas, leis, decisões e decretos). De acordo com os responsáveis pela pesquisa, o levantamento realizado serve de roteiro explicativo do caos que se instalou no enfrentamento da pandemia.

O documento – que publiciza os resultados da pesquisa que analisou mais de 3 mil atos – apresenta uma linha do tempo que tem início em março de 2020 e chega até a primeira quinzena de janeiro de 2021. Nela, as informações estão divididas em três eixos: a) atos normativos; b) atos de obstrução às respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia e c) propaganda contra a saúde pública definida como “o discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais, além de notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica, com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias”.

Com afirmações contundentes como: “Nossa pesquisa revelou a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”, os pesquisadores se posicionam abertamente contra as ações que, segundo eles, levaram um país como o Brasil, que embora tenha 3% da população mundial, a concentrar 11% dos óbitos no mundo, ocupando o 2º lugar mundial em número de mortes. Número que supera países superpopulosos como a China e a Índia, ambos com mais de um bilhão de habitantes.  Trata-se, portanto, de uma acusação seríssima que se soma a outras que servem de base a pedidos de afastamento do presidente da República. Acusações que se avolumam e que estão por merecer total atenção por parte dos poderes constituídos.

Lembramos aqui a denúncia de omissão contra o governo Bolsonaro apresentada, em 21 de janeiro de 2021, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) à Organização dos Estados Americanos (OEA). Um documento incisivo que afirma que “as atitudes do presidente da República, entre outros funcionários do alto escalão do Executivo diretamente a ele subordinados, atentam contra os direitos humanos mais básicos, colocando em risco a integridade física e a vida de todos os cidadãos brasileiros. Conclui-se, assim, que o Estado brasileiro tem agido contra a sua população”.

O fato é que vivemos um verdadeiro caos na condução do governo federal em relação à pandemia e as formas de combatê-la. Um caos que inclui troca de comando dos responsáveis pela proteção da saúde da população; desautorizações de ministros; o silenciamento de gente competente e a ocupação do Ministério da Saúde por militares sem preparo algum para ocupar tais cargos. Um caos que silencia e constrange um programa exitoso e exemplar como o Programa Nacional de Imunizações.

Uma política de destruição que se estende à atuação fanática e temerária na nossa política externa. Política externa responsável pelo isolamento do país e, segundo alguns observadores, pelo atraso no fornecimento do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) proveniente da China, país fortemente atacado por bolsonaristas radicais (incluindo o filho do presidente) e pelo chanceler Ernesto Araújo.

Política externa que afastou o Brasil dos BRICS (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e fez com que o país recuasse de sua posição tradicional de defesa da flexibilização do acordo internacional de proteção à propriedade intelectual para atacar a proposta apresentada à Organização Mundial do Comércio, em outubro de 2020, pela África do Sul e pela Índia nesse sentido. Pela proposta dos dois integrantes do BRICS seria permitida a suspensão dos direitos de patente e outros instrumentos de propriedade intelectual vinculados ao combate à pandemia de Covid-19. Tal suspensão duraria pelo menos até que a maioria da população mundial fosse vacinada e a transmissão do vírus fosse interrompida.

Não há como negar que estamos vivendo um pesadelo sem fim provocado por uma gestão negligente e insensível ao sofrimento alheio que, até agora, vitimou aproximadamente 220 mil pessoas e suas famílias. Um em cada mil habitantes. Um número que tem crescido a uma taxa de mais de mil mortos por dia.

Uma tragédia que transformou Manaus em palco de horrores com gente morrendo por falta de oxigênio. Uma circunstância que, a exemplo do município paraense de Faro, pode castigar outras cidades. Um drama que parece não sensibilizar o presidente e seu governo, ambos mais preocupados com a disputa com o antigo aliado João Doria, com a eleição do presidente do Senado e da Câmara dos Deputados. Insensibilidade traduzida em frases como: “e daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”; “Sou Messias, mas não faço milagres” ou “não sou coveiro”; todas elas proferidas em abril de 2020, quando o país ultrapassou a marca de 5 mil mortos.

A situação que, como se sabe, se agravou terrivelmente com as mortes superando duas centenas de milhares. Um dano acarretado pela recusa de seguir as recomendações da saúde pública e da ciência. Uma atitude que varre a morte e a doença para os cantos dos hospitais lotados. Hospitais que o presidente estimulou que fossem invadidos para que todos constatassem que os mesmos estavam vazios. Declarações tão improcedentes quanto a absurda e falsa acusação de que governos locais estavam enterrando caixões vazios para aumentar suas receitas com a obtenção de verbas para combater a pandemia.

Enquanto deixávamos quase 7 milhões de testes sem uso em vias de perder a validade em um galpão no aeroporto de São Paulo, gastávamos recursos públicos com cloroquina e perdíamos tempo precioso com polêmicas diversionistas. Não caminhamos como deveríamos no que se relaciona ao provimento de vacinas necessário à proteção de nossa população e de nossa economia. Não fossem as iniciativas da Fiocruz e do Butantan, o país não teria perspectiva alguma para tratar de forma eficaz e o avanço da pandemia.

O governo federal, sob o comando de Bolsonaro, foi totalmente imprudente com relação a nossa participação na aliança mundial Covax Facility ao optar por adquirir uma quantidade bem pequena de imunizantes quando teríamos direito a uma cota suficiente para atender 50% da população. Imprudente quando não negociou com a Pfizer. Imprudente quando Bolsonaro desautorizou as negociações do ministro Pazuello com o Butantan para aquisição de 46 milhões de doses da vacina Coronavac sob a alegação de que não compraria uma dose sequer da vacina chinesa ou negociaria com João Dória, conforme matéria publicada na Folha de São Paulo de 21 de outubro de 2020. Imprudente quando negligenciou o planejamento da estratégia de vacinação e a compra de seringas.

Atualmente presenciamos, no mundo e no Brasil, uma verdadeira guerra por vacinas. Ao mesmo tempo nos deparamos com os limites de nossa estratégia de desinvestimento na ciência, tecnologia e industrialização. Em economia seremos vítimas do protecionismo e da predação internacional enquanto esperamos pela salvação da “fada da confiança” do mercado que nunca chegará. Estamos à deriva e a caminho da ruína total.

Nos estados e municípios, bolsonaristas que pregavam contra a vacina correm para tentar furar a fila de prioridades. Entretanto, não lhes ocorre pensar sobre a contribuição que deram para que chegássemos a esse ponto.

2021 se mostra como ano duro. Não há mais auxílio emergencial e a economia não dá sinais de melhora. O governo federal busca a privatização e o corte de salários de servidores públicos como forma de dizer que está fazendo alguma coisa. Procura assim esconder a sua enorme incompetência em lidar, também, com a esfera econômica. O que ele procura é um bode expiatório para o malogro de uma receita que o primeiro mundo abandonou. O que ele procura é encobrir a falta de vontade política de promover um desenvolvimento inclusivo, pautado na solidariedade e no respeito à democracia.

O país errou e não tem mais volta nem tempo para voltar. A verdade foi substituída por manipulações grosseiras e vidas foram ceifadas e famílias foram destruídas. Entretanto, se é impossível alterar o passado, podemos mudar o presente e construir um futuro melhor. Um futuro que o país almeja e merece.

Somos a Asfoc-SN. Somos Fiocruz. Somos SUS.

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