Em março de 2020, a Asfoc alertava para o fato de que estava em curso no país uma estratégia velada de combate à pandemia. Uma ação baseada na tentativa de obtenção da imunidade de rebanho na ausência de vacinas. Uma política que assumia os riscos da exposição da população à Covid-19 e da livre circulação do vírus. Riscos concretizados na morte de mais de meio milhão de pessoas e no surgimento de variantes mais perigosas e difíceis de combater.
Com atraso inaceitável, o Governo Federal reconheceu que era preciso adotar a vacinação como forma de deter o avanço da Covid-19. Um reconhecimento a contragosto, que não se contrapunha à estratégia inicial que, na realidade, nunca foi efetivamente abandonada. Um reconhecimento que não foi capaz de efetivar a aquisição a baixo custo da cota que o Brasil teria direito na iniciativa Covax Facility e que poderia atender a metade da nossa população. Na verdade, a utilização de vacinas passou a ser vista como instrumento complementar e secundário para a obtenção da imunidade pretendida. Um instrumento que, como estamos vendo, se tornou objeto de aquisições superfaturadas com preços que superam em muito o custo de US$ 3,16 (R$ 15,85) por dose produzida na Fiocruz, para alcançar cifras de US$ 15 (R$ 75,25) por dose, no caso da Covaxin, alvo das denúncias na CPI, chegando a US$ 17 a dose da vacina Convidecia do laboratório chines CanSino Biologics (ver tabela em Real abaixo)
A adoção das vacinas no combate à pandemia foi acompanhada de declarações polêmicas do presidente Jair Bolsonaro. Declarações que lançavam dúvidas sobre a eficácia de algumas delas; sobre países e produtores; sobre eventuais efeitos adversos e cláusulas contratuais. Declarações fazendo referência à “vachina” do Butantan que causaram embaraços diplomáticos e, possivelmente, atrasos no fornecimento de insumos como o IFA; a não obrigatoriedade da vacinação e a possibilidade da pessoa vacinada se transformar em jacaré, dividiam o noticiário com a campanha contra o uso de máscaras, oposição às medidas de restrição de movimentação e as aglomerações promovidas pelo chefe do Executivo. Ao lado disso, o presidente renunciava ao papel de articulador de nossas defesas para se lançar em uma guerra contra governadores, prefeitos, instituições, autoridades sanitárias e científicas do Brasil e do exterior defensoras do isolamento social.
Hoje o país é sacudido pelas denúncias dos irmãos Miranda na CPI da pandemia. O que está sendo paulatinamente conhecido é assustador. Revelações que podem explicar as razões para recusarmos a cota máxima a que tínhamos direito no consórcio internacional Covax Facility e optarmos pelo quantitativo mínimo que só atenderia 10% da população. Motivos que podem explicar a forma irresponsável e desleixada como alguns produtores – entre eles o Butantan – foram tratados pelo Governo Federal. Há indícios fortíssimos de que estamos diante de um dos maiores escândalos de nossa história. Um escândalo cujo enredo e interpretações possíveis procuraremos traçar a seguir.
O novelo dessa pavorosa trama começa a ser desenrolado com a nomeação de Ricardo Barros, político com reduto eleitoral na cidade paranaense de Maringá, como ministro da Saúde de Michel Temer. A chegada de Ricardo Barros ao Ministério da Saúde abriu espaço para personagens e empresas a ele ligadas, sendo algumas delas também de Maringá.
Estamos nos referindo a personagens como Francisco Maximiano (representante legal da Precisa); Fernando de Casto Marques (dono da União Química); Emanuel Catori e Francisco Feio Ribeiro Filho (ambos representantes da Belcher do Brasil). Estamos falando de empresas como a Precisa Medicamentos que atuou como intermediária na negociação da compra da vacina indiana Covaxin produzida pela Bharat Biotech (negócios envolvendo R$ 1,67 bilhão); da União Química, representante da vacina russa Sputnik V, na negociação da aquisição de 10 milhões de doses; da Belcher do Brasil, responsável pela aquisição de 60 milhões de doses da vacina chinesa Convidecia do laboratório chinês CanSino no valor total de R$ 5,2 bilhões, um verdadeiro negócio da China.
Essa lista pode ser acrescida ainda de nomes como o do Coronel Elcio Franco, ex-secretário executivo do Ministério da Saúde na gestão de Pazuello, responsável por centralizar as negociações com os representantes dos laboratórios internacionais no país e investigado pela CPI. Personagem que aparece ao lado de Onyx Lorenzoni, réu confesso de utilização de caixa dois, ameaçando o servidor Luis Miranda de processo de calunia. Estamos falando também do senador Flávio Bolsonaro, que pediu para que o presidente do BNDES recebesse Francisco Maximiano, dono da Precisa (representante da Bharat Biotech e da Moderna), para tratar, segundo afirmou o senador, de outros temas não relacionados com a vacina indiana.
De acordo com membros da CPI, da imprensa e dos irmãos Miranda, as intrincadas negociações para aquisição de vacinas escondem um esquema assustador centrado nas empresas intermediárias e na eventual facilitação diante de processos licitatórios.
No desenho traçado por esses observadores, a aquisição da cota mínima no consócio Covax Facility; a demora em atender aos insistentes contatos da Pfizer; a ruptura das negociações para aquisição de 45 milhões de doses da vacina CoronaVac do Butantan; o pouco interesse pela vacina da Janssen, acusada juntamente com a Pfizer de apresentar contrato draconiano, integraram uma estratégia de beneficiar as empresas brasileiras que atuam como representantes dos laboratórios internacionais. Empresas cujos donos mantêm boas relações com Ricardo Barros já há algum tempo.
Nesse enredo chama a atenção o caso da aquisição da vacina russa Sputnik V do laboratório russo Gamaleya, uma negociação que corria dentro do esquema descrito, mas no meio do caminho sofreu alteração. As negociações estavam sendo conduzidas pela União Química, empresa de propriedade de Fernando Castro Marques também ligado ao líder do governo na Câmara dos Deputados e figura de proa do Centrão, Ricardo Barros. Entretanto, os planos da União Química foram atrapalhados pela ação do Consórcio do Nordeste que estabeleceu negociações diretas com o laboratório Gamaleya.
A se confirmar essa perspectiva, não interessaria a aquisição de vacinas daqueles laboratórios com representação direta e sem intermediários no Brasil. Estando nesse caso as vacinas da Fiocruz, do Butantan, do consórcio internacional Covax Facility, da Pfizer e da Janssen.
Além da denúncia na CPI, as circunstâncias que aproximam Barros desse rumoroso caso envolvem, entre outras ações, o fato dele ter sido o autor de uma emenda parlamentar que facilitou a compra dos imunizantes. Foi ele também que ameaçou, em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”, “enquadrar” a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para acelerar o aval às vacinas. As coincidências não param por aí, Ricardo Barros também nomeou, quando era ministro, a servidora que autorizou o contrato irregular denunciado pelos irmãos Miranda. Segundo apurou Luis Nassif, Barros já tinha o nome ligado a um caso suspeito envolvendo a aquisição e indicação de uso de medicamento ineficaz para o tratamento de crianças com leucemia.
As graves denúncias da CPI contra Ricardo Barros atingem diretamente o presidente Jair Bolsonaro. Para os integrantes da CPI, o presidente teria cometido crime de prevaricação ao não tomar atitude de mandar investigar o caso com todo o rigor. De acordo com informações levantadas pela imprensa (até o momento em que essa nota é escrita), o pedido de investigação nunca checou à Polícia Federal. Por outro lado, é fato que Jair Bolsonaro nomeou, no dia 6 de maio de 2021, Cida Borghetti (PP), mulher de Ricardo Barros, para o Conselho de Administração da Itapu Binacional com salário mensal básico de 27 mil reais. Nomeação que ocorreu, portanto, após a denúncia dos irmãos Miranda em 20 de marco de 2021. Nomeação no mínimo estranha para quem admitiu ter recebido a denúncia que mencionava Ricardo Barros como possível mentor do esquema.
Nesse período difícil que enfrentamos, sobressai a importância de um serviço público de qualidade e dos servidores públicos enquanto agentes a serviço do bem comum e da cidadania. Em que pesem as contribuições da iniciativa privada, não fossem os servidores do SUS; as universidades; os centros de pesquisa e instâncias do judiciário, estaríamos certamente em uma situação ainda mais grave. Não fosse o estatuto da estabilidade não teríamos exemplos como o do delegado da Polícia Federal, Alexandre Saraiva, que denunciou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Não teríamos o servidor Luis Ricardo Miranda como denunciante de uma negociação espúria. Estivéssemos sob o regime da Reforma Administrativa proposta por Bolsonaro, as portas do Executivo Federal estariam abertas para 90 mil indicados pelo presidente ou seus aliados.
É estarrecedor o quadro que vivemos no país. Um enredo que envolve paraísos fiscais, empresas de fachada com capital social irrisório negociando bilhões. Personagens estranhos e episódios surreais como Wassef, aquele que escondeu Queiroz, rondando a CPI e se trancando no banheiro feminino para fugir da segurança do senado, se juntam ao terraplanismo de figuras como Damares ou o presidente da Fundação Palmares. Seria cômico, se não fosse trágico. Estamos diante da maior calamidade sanitária já enfrentada pelo país. Uma calamidade que se soma ao descalabro ambiental também envolto em negociatas. Uma calamidade que se estende a uma crise econômica com milhões de desempregados. Que se junta à volta da fome. Um momento em que não podemos esquecer ou reduzir a dor das famílias dos mais de 500 mil mortos. É hora de dar um basta a essa tragédia. É hora de responsabilizar e punir aqueles que nos trouxeram até aqui. É hora de começar a reconstruir o país!