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O que pode mudar com a Reforma Administrativa?

Na perspectiva da Asfoc-SN e de muitos outros analistas, a Reforma Administrativa apresentada pelo governo Bolsonaro ao Congresso Nacional não tem por objetivo melhorar a eficiência do Estado ou aumentar o grau de transparência e republicanismo no trato com a coisa pública. Também não pretende aumentar a oferta e a qualidade dos serviços destinados ao atendimento das demandas sociais, como a grande mídia e setores fisiológicos defensores da proposta querem fazer crer. Seu objetivo não revelado é outro. Sua aprovação, alertam inúmeros especialistas que se debruçaram sobre a proposta, possibilitará uma abertura para o controle absoluto da máquina pública por segmentos econômicos e políticos, cujos interesses são, em tudo, distintos e distantes do bem comum e das necessidades da população e do país.

Trata-se, na realidade, da volta às práticas do patrimonialismo, do clientelismo, do mandonismo. Estamos diante da tentativa de abertura do Estado ao loteamento de cargos públicos. Uma abertura para a captura e controle privado do Estado por parte de uma parcela da elite brasileira e dos grupos a ela associados, incluindo entre esses últimos, gente ligada ao crime organizado.

Um projeto dirigido por uma elite parasitária e comprometida com o capital financeiro improdutivo que vive da renda obtida pelo mecanismo de perpetuação da dívida pública e da exploração da agiotagem expressa na prática de juros e taxas extorsivas, que oprimem e aprisionam a maior parte da população brasileira que hoje, como sabemos, se encontra endividada e inadimplente. Um projeto que conta com o apoio de parcelas conservadoras e privilegiadas do setor produtivo e de grande parte da mídia tradicional. Uma proposta que manipula a opinião pública não permitindo a expressão do contraditório e o aprofundamento do debate. Uma proposta que faz apelo à justa indignação das camadas médias e populares iludidas com as promessas de combate à corrupção, ao desperdício e a suposta ineficiência do setor público. Uma proposta que é apoiada por grupos politicamente organizados que exploram e manipulam o desamparo da população vulnerabilizada pelas políticas recessivas e excludentes do neoliberalismo. Uma proposta nociva e diversionista que cumpre o papel de atrair a atenção do debate nacional, apontando pretensos obstáculos e culpados para uma série de problemas que o governo se mostra incapaz de resolver.

Uma proposta insidiosa e ofensiva que tem por base a desqualificação dos servidores públicos que, em situações críticas como essas evidenciadas pela ocorrência da pandemia de covid-19, têm demonstrado determinação e forte sentido de espírito público. Uma proposta que atenta contra os interesses do país e que conta com a simpatia de grupos estrangeiros interessados no livre acesso às nossas riquezas naturais e a nichos de mercados ocupados pelo Estado ou por empresas nacionais.

Estamos diante de uma ameaça velada à democracia. Um ataque frontal à possibilidade de construção e implementação políticas de Estado. Uma intenção de constranger a autonomia das instituições. Uma ameaça à transparência. Um intento contrário ao princípio da impessoalidade.

Opera-se, na verdade, uma tentativa de submissão completa do setor público ao consórcio de forças predatórias responsáveis pelas agressões ao meio ambiente; pelo domínio oligopolizado das estruturas e serviços urbanos e rurais, incluindo, entre outras áreas, transporte, saúde, energia, saneamento e educação.

Sua implantação significa a perda da eficiência, da capacidade crítica e da isenção do exercício das funções públicas. Significa o abandono da capacidade de inovação e de formulação de respostas à crise sanitária e econômica que atinge o país e aos desafios que nos esperam em um futuro não muito distante. Expressa o domínio da mediocridade, do compadrio e da bajulação. Do negacionismo e do terraplanismo. Instala, de forma sólida, a visão unidimensional de uma mentalidade autoritária e agressiva com as diferenças.

Assim como em 1929, o mundo se dá conta que o Estado, apontado como intrinsecamente ineficiente e como o grande vilão do desequilíbrio fiscal, é a única tábua de salvação de uma economia mundial que já vinha em crise mesmo antes da eclosão da pandemia de coronavírus.

A pandemia de coronavírus tornou evidente que as sociedades não podem abrir mão de sistemas públicos de saúde e que a legislação trabalhista é fundamental para a proteção do trabalhador. Deixou claro também que o mercado jamais substituirá o Estado no provimento do bem-estar social. Evidenciou ainda que, apesar de nossas diferenças, precisamos nos unir na construção de alternativas à concentração de renda e a irresponsabilidade ambiental e social que marcam as destrutivas políticas neoliberais.

Entretanto, no Brasil, ao contrário da maioria dos países, caminhamos em direção ao aprofundamento das políticas que nos trouxeram a situação de crise que já experimentávamos antes da pandemia. Insistimos em políticas que nada de bom deram ao país.

Sabemos que a crise econômica que castigava o país com taxas elevadíssimas de desemprego sofreu forte impulso com a chegada da pandemia e com a incapacidade demonstrada pela área econômica e pelo chefe do Executivo em lidar com essa associação. Não evitamos a morte de mais de 120 mil pessoas e não equacionamos a saída para a crise econômica. O tombo histórico do PIB do segundo trimestre de 2020, que chegou a uma patamares abissais de quase 10% em contraposição ao crescimento chinês situado em 11,5% no mesmo período, indica que temos anos duros pela frente e que temos trilhado caminhos errados. Estamos fragilizados economicamente e também politicamente isolados do restante do mundo. De país visto como dotado de grande capacidade de arbitragem de conflitos internacionais e postulante a uma cadeira no conselho de segurança da ONU passamos a condição, aos olhos do mundo, de mero apêndice na grande área de influência dos EUA.

A reversão desse quadro passa pela retomada de investimentos públicos. Passa pelo abandono completo das políticas recessivas preconizadas pelo neoliberalismo. Um caminho em franco declínio em todo o mundo. Precisamos reafirmar que o postulado do déficit fiscal como impeditivo de reaquecimento da atividade econômica é, na realidade, uma falácia construída por uma ideologia que se pretende técnica. Estamos, isto sim, diante de uma mentira repetida à exaustão para que ganhe ares de verdade inquestionável. 

Embora não se defenda aqui o desequilíbrio fiscal, vale ressaltar que países do primeiro Mundo, a exemplo do Japão e de outras potências econômicas, produzem déficits para financiar o desenvolvimento. Isso porque, em situações de crise, o mercado se defende e para de investir. Em tais momentos somente o Estado pode fazer a economia voltar a girar. O problema, portanto, não está na produção de déficits, mas na natureza e nas suas formas de reprodução.

A experiência mostra que a produção de déficits pode conviver, de modo funcional, com o conjunto da economia. Ainda mais em economias como a nossa que não possui dívida em moeda estrangeira e ostenta uma reserva internacional considerável.  O fato é que déficits produzidos para fazer girar a economia podem ser sanados pelo retorno das receitas derivadas do aquecimento do mercado. É o que ocorre, por exemplo, em economias de países que têm compromisso com a sua população, com a geração de empregos e com a sua soberania. Países onde a produção de déficits cumpre a função de força motriz. Por outro lado, déficits, como os nossos, originários de rolagem de dívidas e destinados, quase que exclusivamente, a remunerar o rentismo em detrimento do setor produtivo podem produzir um ciclo vicioso difícil de controlar e interromper. Uma engrenagem que, em situações como a vigência de uma pandemia como a de covid-19, revela sua face mais cruel e condena milhares à morte pelo abandono e pelo colapso das estruturas de atenção à saúde.

Há muito tempo está em curso uma ampla e contínua campanha de desvalorização do serviço público. Uma campanha que se utiliza de estratégias de precarização e ausência de investimentos para minar a capacidade de resposta e comprometer a imagem do setor. Uma estratégia que usa de mentiras sobre o tamanho e as características do Estado brasileiro. Que distorce informações e que apresenta casos isolados como regra geral. Uma estratégia que esconde que grande parte dos servidores públicos está na ponta, na linha de frente, no contato direto com a sociedade a quem serve. São professores, agentes comunitários de saúde, enfermeiros, médicos, policiais, para citarmos alguns.

Trabalhos como o Atlas do Estado Brasileiro, produzido pelo IPEA, e as análises pormenorizadas disponibilizadas pela ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil) são instrumentos valiosos e têm muito a contribuir nessa discussão. Contudo, apesar do seu valor, são propositalmente desconsiderados por aqueles que, mobilizando a indignação e o desespero diante de taxas recorde de desemprego, buscam ampliar o domínio sobre o patrimônio público. Não há qualquer intenção de pactuar reformas que tenham por objetivo romper com as amarras e as condições que realmente travam o desempenho do setor público. Ao contrário, o que se verifica é o ataque aos orçamentos e às fontes de financiamento estabelecidas para área cruciais como a seguridade social, vítima, como todos sabem, de mecanismos como a Desvinculação de Receitas da União (DRU).

Estamos diante de uma iniciativa que pode comprometer seriamente o futuro do país. Na Fiocruz, assim como outras instituições de pesquisa, corre-se o risco da fuga de cérebros, do fracionamento da integração sinérgica que a caracteriza e mesmo da extinção de áreas de vital importância para a construção de um país democrático, próspero, soberano, sustentável e inclusivo.

Descontinuidades difíceis de serem sanadas e cujos efeitos negativos podem perdurar por décadas. É hora, portanto, de levar nossa visão ao conhecimento da sociedade. É hora de exigir o exercício do contraditório. É hora de lutar pela civilização contra a barbárie, contra o arbítrio e o obscurantismo. É hora de defender a democracia e um projeto de desenvolvimento centrado na garantia de oportunidades iguais e condições dignas para todos. É hora de defender um Estado promotor da vida e da cidadania.

Diretoria Executiva Nacional da Asfoc-SN

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