Na comemoração dos 20 anos do Instituto Carlos Chagas (ICC), o pesquisador Samuel Goldenberg fez um marcante discurso em defesa da ciência e do ensino, no dia 9 de agosto, no auditório do Tecpar, na Fiocruz Paraná. De acordo com ele, a preservação destes pilares “faz parte da defesa da democracia”.
Segundo Samuel, hoje vivemos tempos de negacionismo, em que os conceitos científicos são desafiados e aviltados com base em teorias sem fundamentação, em mentiras, e em leviandades.
“Vivemos a triste realidade em que cientistas reconhecidos, e dados científicos qualificados, são confrontados por interesses políticos, autoverdades ou pensamentos retrógrados e arcaicos”.
O pesquisador citou exemplos recentes: o do INPE, acusado de “mentir” sobre o desmatamento da Amazônia; o da Fiocruz, cuja pesquisa sobre drogas foi atacada como “não confiável”; e do IBGE, por “não permitir conclusões” sobre desemprego. “Para citar apenas algumas notícias que transparecem no dia a dia da imprensa, felizmente ainda livre”.
Para ele, também existe um horizonte nebuloso, com instituições nacionais sob ameaça, como Embrapa, Inpe, universidades federais e a própria Fiocruz. “O sistema de fomento à pesquisa está ameaçado e é do conhecimento de todos a situação precária e de desmantelamento por que passa o CNPq”.
O pesquisador ainda afirmou que uma grande ameaça paira sobre a cabeça dos cientistas com o descrédito e demérito do conhecimento acadêmico, visando transformá-los em inimigos internos. “Assim, mais do que nunca, temos que trabalhar e enfrentar as adversidades que se impõem, pois é através de nossa dedicação à ciência que criaremos a resistência e a resiliência para que nossos filhos e netos possam ter um futuro em um Brasil, presentemente ameaçado em sua soberania e caminho democrático”.
Confira a íntegra do discurso:
“Estamos reunidos nesta solenidade para celebrar os 20 anos do início de um empreendimento de sucesso. Em 1999 assinávamos o protocolo de intenções tratando da instalação de uma unidade da Fiocruz em Curitiba, almejando trazer para a região a força, a tradição histórica e a excelência da Fiocruz. Uma equipe de quatro pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, Claudia Nunes Duarte dos Santos, Marco Aurelio Krieger e Stenio Perdigão Fragoso, sob a minha coordenação, iniciou suas atividades neste no campus do Tecpar em janeiro de 2001, no Instituto de Biologia Molecular do Paraná, IBMP, fruto do protocolo estabelecendo a parceria da Fiocruz com o governo do Estado do Paraná. Este arranjo permaneceu até 2009 quando houve a criação formal do Instituto Carlos Chagas (ICC), unidade regional da Fiocruz, havendo o desmembramento do IBMP. O crescimento do ICC ao longo destes 20 anos foi fruto do apoio que recebemos por parte da direção da Fiocruz, que investiu não apenas em recursos orçamentários, mas sobretudo no capital humano, através das vagas de concurso que pleiteamos. Neste sentido, simbolizo no presidente Paulo Gadelha o reconhecimento a este apoio institucional, através de uma ação de 16 anos, primeiramente como vice-presidente de gestão e depois como presidente da FIOCRUZ. É importante destacar também o apoio inicial do governo do Paraná, através do governador Jayme Lerner, que propiciou nossa vinda ao Paraná e nossa localização neste campus. Este apoio do governo do Estado tem sido contínuo, através de ações junto ao fundo Paraná, Fundação Araucária e parcerias com a secretarias de Estado da Saúde (e aqui gostaria de mencionar o apoio do ex-secretário Armando Raggio) e com a SETI (mencionando aqui o apoio do ex-secretário e agora superintendente Ramiro Warhaftig). O apoio do Tecpar, ao longo das suas diferentes gestões, tem sido fundamental e o fortalecimento de nossa interação é de alta relevância pois ICC e Tecpar têm um importante protagonismo no desenvolvimento científico e tecnológico do Estado. Finalmente, e não menos importante, a implantação e solidificação do ICC só foi possível graças a políticas de Estado visando o fomento e fortalecimento da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, promovidas no período de 2003 a 2014 com o presidente Lula e o primeiro governo da presidenta Dilma. A implantação de uma unidade da Fiocruz no Paraná resultou em importantes contribuições para o Estado e para o país. Ajudamos a fortalecer o sistema de pós-graduação e a formação de recursos humanos qualificados na região, seja atuando junto com a UFPR (notadamente no programa de Biologia Celular e Molecular do qual somos cofundadores), com as universidades estaduais (UEL, UEM e UEPG, que tiveram alguns quadros formados em nossos laboratórios e vários professores colaboradores), ou ainda através de nosso programa de Pós-Graduação em Biociências e Biotecnologia. Nossa atividade de pesquisa resultou não apenas em publicações, mas também em produtos para a sociedade, e aqui destaco o kit Hantec para diagnóstico de hantavírus, e o teste de detecção de ácidos nucleicos para HIV e hepatite C. De nossos laboratórios saiu a primeira detecção da circulação de vírus Zika no Brasil. Um reflexo do reconhecimento da qualidade do ICC é que somos o ponto focal do INCT, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, para Diagnósticos em Saúde Pública. Nossas pesquisas, publicadas em revistas internacionais, têm dado contribuições importantes nas áreas de parasitologia, virologia, biologia molecular, biologia celular, estudos com células tronco, biologia computacional, proteômica, bioinformática e micologia médica. A excelência desta pesquisa é acompanhada por serviços qualificados e o ICC alberga laboratórios de Referência do Ministério da Saúde para vírus emergentes e para leishmaniose. Destacada a origem e a história do ICC, gostaria de fazer uma reflexão sobre as perspectivas do nosso instituto. Neste sentido, tomo a liberdade de me dirigir aos colaboradores do ICC e em especial aos servidores, já que a maioria do pessoal atualmente contratado ingressou no ICC através de concursos, ou através de transferências de outras unidades, em processos que coordenei como diretor. O ICC foi idealizado para ser um centro de pesquisas de padrão internacional, propiciando aos pesquisadores as melhores condições para o desenvolvimento de suas atividades, em prol da saúde da população – lembrando que a defesa do SUS está em nossa missão institucional- e visando a formação de recursos humanos qualificados. Consequentemente, nossa atividade precípua tem que ser a pesquisa, e é ao seu redor que as outras atividades devem gravitar. As condições de infraestrutura e apoio técnico para a pesquisa existentes no ICC, são exceções em nosso país, equiparando-se àquelas encontradas nas melhores instituições de pesquisa internacionais. A situação privilegiada que desfrutamos tem que ser aproveitada, e temos que devolver para a sociedade o investimento que recebemos, através de nossa dedicação à pesquisa. COMPROMISSO e DEDICAÇÃO têm que ser nossas palavras de ordem. Mais do que nunca, temos que defender a Ciência, e esta defesa ganha transparência através da demonstração da relevância do nosso trabalho. Vivemos tempos de negacionismo, em que os conceitos científicos são desafiados e aviltados com base em teorias sem fundamentação, em mentiras, e em leviandades. Vivemos a triste realidade em que cientistas reconhecidos, e dados científicos qualificados, são confrontados por interesses políticos, autoverdades ou pensamentos retrógrados e arcaicos. Exemplos recentes são os de que o INPE mente sobre o desmatamento da Amazônia, que os dados do IBGE não permitem conclusões sobre o desemprego, que o Brasil é o país que menos utiliza agrotóxicos, que não existe fome no Brasil ou que os dados da Fiocruz sobre drogas não são confiáveis, para citar apenas algumas notícias que transparecem no dia-a-dia da imprensa, felizmente ainda livre. No horizonte nebuloso que se descortina, instituições nacionais com tradição e excelência estão sob ameaça, citando como exemplos a EMBRAPA, o INPE, as Universidades Federais e quiçá a própria Fiocruz em sua defesa do SUS. O sistema de fomento à pesquisa está ameaçado e é do conhecimento de todos a situação precária e de desmantelamento por que passa o CNPq. Finalmente, uma grande ameaça paira sobre a cabeça dos cientistas com o descrédito e demérito do conhecimento acadêmico, visando nos transformar em inimigos internos, por exemplo a serviço de ONGs contrárias ao interesse nacional. Assim, mais do que nunca temos que trabalhar e enfrentar as adversidades que se impõem pois, é através de nossa dedicação à ciência que criaremos a resistência e a resiliência para que nossos filhos e netos possam ter um futuro em um Brasil, presentemente ameaçado em sua soberania e caminho democrático. É isso que eu espero do ICC”.