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Seminário debate riscos das reformas

Cumprindo mais uma decisão de Assembleia Geral, a Asfoc-SN promoveu, sexta-feira (03/12), o Seminário “Desafios do mundo do trabalho: análise sobre o modelo do programa de gestão do governo – PECs 32 e 23”. O evento virtual, que teve a participação da doutora em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela Universidade de São Paulo (USP), Júlia Lenzi Silva; o advogado do Sindicato, Tiago Penna; e o diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Fausto Augusto Júnior, servirá de subsídio para os delegados do IX Congresso Interno da Fiocruz, nos dias 8, 9 e 10 de dezembro.

Dividido em dois blocos, coube à Júlia Lenzi a abertura do seminário. Em sua apresentação, a doutora em Direito dividiu sua fala em quatro tópicos: contextualização do número de servidores públicos no Brasil; mercado de trabalho com enfoque nas trabalhadoras; trabalho invisibilizado (pautas silenciadas) e propostas reflexivas sobre as questões.

Em relação ao discurso de excesso de servidores no país, Júlia Lenzi desmistifica a questão: o Brasil tem 12,5% do total de trabalhadores no funcionalismo público, enquanto Suécia, 28,8%; França, 21,9%; Canadá, 19,4%; Espanha, 15,3%; Estados Unidos, 15,2%; e Itália, 13,4%. Na América Latina, a Argentina tem 17,2% e o México um percentual semelhante ao brasileiro, de 11,8%.

Para ela, os servidores públicos são sempre os velhos e novos vilões. Segundo Júlia, por meio do discurso de privilégios causa-se a divisão e ressentimento na classe trabalhadora. “Os servidores públicos são colocados como bodes expiatórios dos intermináveis ciclos de reforma. Sempre há a promessa que, se houver a diminuição com gasto pessoal, os recursos vão melhorar a vida da população”, afirmou.

Então, os direitos dos servidores são colocados como moeda de troca. No governo Bolsonaro, por exemplo, o discurso de privilégio foi aperfeiçoado como estratégia. “Ele entende que atacar os servidores públicos é sempre uma estratégia bem-sucedida para conseguir destruir esse projeto constitucional de criação de um Estado de bem-estar social. Esse discurso foi usado para aprovação da Reforma da Previdência e da Emenda Constitucional 103/2019. Foi uma estratégia bem-sucedida para aprovação da PEC Emergencial e, agora, a da Reforma Administrativa segue o mesmo sentido”, frisou.

Sobre o mercado no Brasil na perspectiva das trabalhadoras, os dados são assustadores: as mulheres ocupam a maioria dos postos de trabalho precarizados, terceirizados e com as remunerações mais baixas; 47% das trabalhadoras não têm carteira assinada (estão no mercado informal); a remuneração masculina para o mesmo cargo/função ainda é 28,8% superior à da feminina; em áreas como saúde, educação e serviços sociais, em que há a predominância de trabalhadoras, os homens chegam a receber  67,2% a mais que as mulheres.

É importante destacar ainda o componente racial – estruturante na ordem do trabalho no Brasil. As mulheres brancas têm rendimento muito superior ao das negras. Cerca de 35% das mulheres inseridas no mercado de trabalho ganham até um salário mínimo – não têm nem garantida a rentabilidade do salário mínimo.

Os lares chefiados por mulheres tiveram crescimento espantoso. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 1995, pulou de 23% para 40%, em 2015, revela o estudo “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça”.

Em 2020, a Oxfam, organização sem fins lucrativos para a promoção da igualdade social e efetivação de direitos sociais, divulgou estudo sobre a realidade estatística das trabalhadoras. No mundo, os homens detêm 50% a mais de riqueza do que as mulheres. Em média, 18% dos ministros de Estado são mulheres e apenas 24%, parlamentares.  “Significa que as mulheres estão frequentemente excluídas dos processos decisórios. Não estão representadas no âmbito da política”, ressaltou Júlia.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019 (não levando ainda em consideração a realidade pandêmica), mostram que as mulheres dedicam em média 18,5 horas/semanais aos afazeres domésticos e ao cuidado com pessoas – os homens, 10,3 horas/semanais para as mesmas atividades.

Ainda há o componente da maternidade: uma pesquisa do IBGE, coordenada pela professora Cecília Machado, analisou mulheres empregadas, com filhos na faixa etária dos 25 aos 35 anos, entre 2009 e 2012. Um ano após o final da licença-maternidade, 48% estavam fora do mercado de trabalho. “Elas são demitidas em razão do exercício da maternidade, por conta das demandas de reprodução da vida”, criticou.

Outro trabalho, invisibilizado, é o mental. É a tomada de decisões feita quase exclusivamente pelas mulheres, de planejar e organizar as tarefas diárias. “Nós acumulamos essa sobrecarga, temos consciência disso e há uma dificuldade gigantesca de mobilizar os nossos companheiros, mesmo aqueles no âmbito público que se colocam como parceiros de luta. No âmbito privado ainda se recusam a se responsabilizar pela divisão correta dessa carga mental”.

Para ela, a pandemia deu uma amostra da sobrecarga feminina na ausência do Estado. “Porque as mulheres tiveram que conjugar o trabalho online, o doméstico e se responsabilizar pelo processo de educação dos filhos”.

Dado o machismo e a misoginia, a destruição dos direitos e garantias dos funcionários públicos tende a agravar ainda mais a situação das servidoras.  Para ela, todas as mulheres serão diretamente afetadas pela destruição dos serviços públicos, porque uma vez mais elas são as principais responsáveis pelo trabalho de cuidado e gerenciamento da vida familiar.

“Das tarefas escolares, passando pelo cuidado das pessoas idosas e suporte emocional de todo núcleo familiar, tudo será agravado em razão da inexistência do sistema público de saúde, da destruição da escola pública, de todos os serviços prestados ao cidadão. Quem vai acumular esse tipo de trabalho é as mulheres, de uma forma mais geral, servidoras públicas ou trabalhadoras da iniciativa privada. Sempre agregando o componente racial e de classe. As mulheres negras da classe trabalhadora tendem a estar numa situação ainda mais periclitante, agravante”.

Para Júlia, diante deste cenário, não é nenhum exagero dizer que a aprovação da Reforma Administrativa, da forma como propõe o governo Bolsonaro, representará um agravamento sem precedentes na situação na desigualdade entre homens e mulheres. “Ao contrário do discurso de privilégios, que nos divide, nos ressente, coloca trabalhador contra trabalhador, nos aproxima e nos coloca numa dimensão de luta pela igualdade. A aprovação de qualquer reforma impactará diretamente a vida das mulheres, que já acumulam essa sobrecarga e estão nessa situação muito desigual perante o mercado de trabalho brasileiro”.

Finalizando sua apresentação, Júlia Lenzi citou uma frase da ativista negra norte-americana Maya Angelou: “Toda vez que uma mulher defende, sem nem perceber que isso é possível, sem qualquer pretensão, ela defende todas as mulheres”.

O especialista e mestre em Direito, o advogado da Asfoc Tiago Penna, também afirmou que um dos discursos que deve ser combatido é o de privilégio dos servidores públicos. “Essa é uma ferramenta usada de forma cruel, de premissas extremamente falaciosas sobre privilégios, excesso de servidores e discurso de necessidade de Reforma Administrativa. Esse é um discurso fácil”, ressaltou.

Tiago comentou que a contratação via serviço público é uma forma do Estado injetar dinheiro na economia. “Isso beneficia toda a sociedade. Inclusive no aspecto puramente econômico. O impacto disso é profundo. O dinheiro circula. Visto só pelo aspecto econômico, é um pensamento tacanho”.

Na segunda parte do seminário, realizada na parte da tarde, o diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Fausto Augusto Júnior, explicou o que está por trás do conjunto de reformas. “É uma desconstrução, a demolição dos acordos sociais consignados na carta constitucional de 1988”.

Essas mudanças iniciaram a partir do impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016. A substituição do modelo de desenvolvimento foi apresentada na posse do presidente Michel Temer, com o programa “A ponte para o futuro” – e avançou na gestão do governo Bolsonaro. A partir da Emenda Constitucional 95/2016, todas as outras reformas se derivaram, como a Sindical e a Trabalhista (2017). Esta última, inclusive, a maior reforma da história da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).

“O sistema de relação de trabalho no Brasil foi alterado de maneira significativa. Significou a flexibilização e a redução dos direitos trabalhistas, a ampliação das formas de contratação precárias, o enfraquecimento da Justiça do Trabalho e, principalmente, um movimento de enfraquecimento do movimento sindical, algo muito parecido com o que aconteceu nos governos Margaret Thatcher (primeira-ministra do Reino Unido) e Ronald Reagan (presidente dos EUA), nos anos 80”.

Com a posse do governo Bolsonaro, houve uma enxurrada de propostas de reforma, todas de cunho liberal. “Sem a menor sombra de dúvidas, há uma enorme movimentação de mercantilização dos direitos sociais no Brasil. Retirar parte significativa do fundo público e recolocá-la para o setor privado. Seja pelas privatizações, desonerações, redução de carga tributária. Tudo está em construção. Reduzir o Estado brasileiro, enfraquecer as organizações dos trabalhadores, reduzir os espaços democráticos de participação com um objetivo muito claro: transferir o fundo público para os direitos serem mercantilizados”.

No caso da Reforma da Previdência, ficou muito clara a proposta de privatização da previdência pública no Brasil. Tinha como base a substituição do regime de repartição pela capitalização (modelo chileno). “A intenção era que a previdência social brasileira (o maior fundo público) caminhasse para uma conta individualizada e fosse gerida por bancos privados”, afirmou Fausto, salientando que a pauta de privatizações é bem forte no governo Bolsonaro (Eletrobrás, Correios e Petrobras).

A PEC 32 (Reforma Administrativa) segue o mesmo caminho das outras reformas, de tentativa de desconstrução do Estado brasileiro. O artigo 37, por exemplo, autoriza o Estado brasileiro a se privatizar (principalmente nas áreas vinculadas aos direitos sociais). “Uma relação promíscua entre o Estado brasileiro e a iniciativa privada. São novas formas de contratação estabelecidas, novos contratos de gestão e a abertura de possibilidade da iniciativa privada prestar serviços, e ocupar o espaço que é hoje do Estado”.

Para Fausto, a PEC 32 quebra três grandes pilares do serviço público no Brasil: a estabilidade, a realização de concursos públicos e o fim do Regime Jurídico Único. “É uma clara intenção de criar ferramentas e mecanismos para a privatização do Estado brasileiro. Desconstrói-se. Na visão deles, o Estado brasileiro tem que se limitar a poder de polícia, fiscalização e tributação. Ao passar a PEC 32, o Estado brasileiro como conhecemos vai ser desorganizado. Entidades, por exemplo, como a Fiocruz deixarão de existir. Serão todos desmontados, transferidos para a iniciativa privada”.

Para ele, a proposta de Reforma Tributária também é um tiro no pé. “Redução da carga tributária não significa melhoria de vida para o conjunto da população. Reforma Tributária vinculada à desconstrução do Estado social significa menos acesso ao direito social e ampliação da nossa desigualdade”.

Mediando o seminário, Mychelle Alves (presidente da Asfoc) interagiu na live fazendo comentários e questionamentos aos convidados, assim como Paulo Garrido (vice).

Acesse os links e assista ao debate na íntegra:

Apresentação Júlia Lenzi e Tiago Penna – https://www.facebook.com/asfocsn/videos/681105346605689/

Apresentação Fausto Augusto Júnior – https://www.facebook.com/asfocsn/videos/433174274926888/

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